13/06/2010

Tribais e miscigenados: a revanche



Desde os idos de 1300, muito antes das primeiras caravelas portuguesas aportarem por aqui, o nome Brasil já circulava como uma lendária ilha paradisíaca nos antigos mapas que circulavam pelo Velho Mundo. Séculos depois, quando a lendária ilha foi, enfim, encontrada, passamos a narrar esse encontro como uma “descoberta” portuguesa.

O que se narra então como uma “descoberta” é, na verdade, uma constatação - a da existência de um paraíso terrestre que, reza a lenda, remonta a essa “Ilha Brasil” apontado nos antigos mapas. O paraíso não só existia como viria mesmo a se chamar Brasil.  E o Novo Mundo descrito por Pero Vaz correspondia mesmo ao mito da “Ilha Brasil”: éramos índios, nus, guerreiros, inocentes, místicos, tementes, vivendo em sistema de tribos e, sobretudo, alheios às conquistas das civilizações pré-modernas.

Quando as primeiras caravelas baixaram vela por aqui, o Novo Mundo era, portanto, tribal. Isso até os portugueses trazerem, a bordo das suas embarcações, o esboço do que começaria a nos transformar em mais projeto de catequização cristã. E ainda que não falassem a mesma língua, índios e portugueses, desde os primeiros momentos desse encontro, a intenção dessa catequização foi verbalizada, ou melhor dizendo, encenada.

E é a encenação da primeira missa que formaliza essa intenção. Por não falarem mesmo a mesma língua, a imagem falou pelo verbo e ali, na primeira missa, se oficializou a passagem de uma história essencialmente tribal para um projeto de “civilização” ocidental, que mais tarde viria desembocar num país. Formalizado o encontro, o Novo Mundo jamais seria o mesmo. E é a força dessa imagem que Víctor Meirelles captou e imortalizou no quadro da “primeira missa”. Talvez por isso, o quadro de Meirelles, apesar de se referir à segunda e não à primeira missa, continue sendo até hoje o símbolo oficial do primeiro encontro entre o Velho e o Novo Mundo, entre o primitivo e a era moderna que se anunciava.

Essa volta ao passado serve para compreender duas características fundamentais na formação do povo brasileiro: a tribalização[1] e a miscigenação. Sobre a tribalização, já vimos que a chegada dos portugueses, mais do que um “descobrimento” propriamente dito, representa a passagem de uma maneira de viver essencialmente tribal para modelos sociais mais “civilizadas”, ocidentais. Esse espírito tribal, originalmente indígena, foi reforçado com a vinda dos africanos trazidos como escravos - e não menos tribais que os índios.

Quanto à miscigenação, como se já não bastasse o próprio encontro entre índios e portugueses, Lagos, a cidade portuária que serviu de base naval para os portugueses arquitetarem a expedição que aportou no Brasil com 1500 homens, era uma corte aberta e cosmopolita. Lá aportava povos do mundo inteiro: “Havia gente das Ilhas Canárias, caravaneiros do Saara, mercadores do Timbuctu (hoje Mali), monges de Jerusalém, navegadores venezianos, alemães e dinamarqueses, cartógrafos italianos e astrônomos judeus”[2]. Ainda que virtualmente, todas essas culturas desembarcaram aqui a bordo das caravelas portuguesas.

Hoje, a Modernidade (que ainda estava nos primórdios da sua configuração quando o Velho Mundo aqui aportou) cede passagem para uma nova era, intitulada por alguns estudiosos de Pós-Modernidade. A tribalização e a miscigenação normalmente são apontadas como características essenciais da contemporaneidade. Cinco séculos depois, parece até revanche que essas características, tão presentes na formação do povo brasileiro – e das quais, repito, nos envergonhamos durante tantas décadas – nos coloquem no contexto mundial como um país pós-moderno (o que não significa dizer um país do primeiro mundo).

Ps: Desencavei esse texto dez anos depois porque vou passar o mês de julho entre Cumuruxatiba e Prado, região do descobrimento do Brasil, trabalhando no projeto A cidade faz upgdrade.
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[1] Ver Marcos Palacios, O Medo do Vazio: Comunicação, Socialidade e Novas Tribos (mimeo, Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia). Neste ensaio, Palacios, aponta para “a redescoberta, através da revolução eletrônica e informacional, de uma sensibilidade que Mc Luhan cunhou de tribal”. Ancorado no trabalho do sociólogo francês Michel Maffesoli em “O Tempo das Tribos”, Palacios defende a idéia de que “essas novas tribo não se restringem às ‘tribos eletrônicas’. Um afoxé na Bahia, uma escola de samba no Rio de Janeiro, uma tribo punk em Londres, poderia ser exemplo desse tipo de agrupamento por afinidades. Trata-se de um tribalismo que pode ser perfeitamente efêmero e que se organiza conforme as ocasiões que se apresentam. São agrupamentos que se esgotam na ação”.

[2] Revista Super Interessante, A Cruzada do Descobrimento, p. 45, fevereiro de 1998.

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